Conversamos com a pesquisadora que lidera o projeto Renade (Relatório Nacional sobre Demências no Brasil), o estudo mais abrangente e recente sobre o panorama brasileiro. A Dra. Cleusa Ferri, reconhecida como autoridade no tema, fala sobre as possíveis soluções para o Brasil, que já enfrenta os desafios da prevenção, diagnóstico e cuidados para cerca de 2 milhões de pessoas com doença de Alzheimer e outras demências.
Perguntamos à psiquiatra e epidemiologista Cleusa Ferri sobre suas principais preocupações em relação às descobertas apresentadas no Relatório Nacional sobre Demências no Brasil (Renade), projeto que ela coordena. A pesquisadora lamentou que apenas 20% dos casos de doença de Alzheimer e outras formas de demência sejam diagnosticados, deixando milhares de pessoas sem consciência da condição e, consequentemente, sem tratamento.
A Dra. Cleusa Ferri também demonstrou sensibilidade diante das dificuldades enfrentadas pelos familiares cuidadores, em sua maioria mulheres, que dedicam, em média, 10 horas diárias ao cuidado sem remuneração, renunciando a grande parte da vida pessoal e comprometendo a própria saúde. Além disso, destacou a grave vulnerabilidade econômica das famílias, que suportam pelo menos 73% dos custos relacionados ao cuidado.
Ela também chamou a atenção para a principal necessidade não atendida dos parceiros de cuidado: a falta de informação sobre a demência e treinamento na provisão de cuidado, a queixa de que simplesmente não sabem como proporcionar os cuidados necessários.
O relatório, em sua essência, é um pedido de socorro.
Leia a entrevista completa da pesquisadora e, se quiser saber mais, acesse o Sumário Executivo do Renade.
Febraz entrevista: Cleusa Ferri
O que mais impactou a senhora, pessoalmente, em relação ao contexto revelado pelas pesquisas do Renade?
Dra. Cleusa Ferri: Em primeiro lugar, eu gostaria de destacar o achado do outro relatório que fizemos, que aponta para uma taxa nacional de pessoas não diagnosticadas estimada em 80% em nosso país. É uma situação grave. Mesmo os 20% diagnosticados, acompanhados pelo SUS, que é o caso da amostra que estudamos no Renade, têm necessidades não atendidas. Imagina quem não sabe da doença e não recebe nenhum tratamento. Também chama muito a nossa atenção a estimativa de que a pessoa com diagnóstico e seus familiares arquem com 73% do Custo Total referente aos cuidados. É uma proporção um pouco mais alta comparada a outros estudos, o que pode estar relacionado com o fato de não termos (por falta de dados disponíveis) incluído no cálculo o Custo Social (cuidado em instituições de longa permanência, centros-dia e serviços de atenção domiciliar), mas somente as despesas com saúde.
Mesmo se tivéssemos os dados para incluir, o cuidado informal seria a parcela mais alta do Custo Total. É importante destacar que, em geral, são as mulheres que acabam tendo de parar de trabalhar ou mudar os planos em termos de vida profissional para poder cuidar do companheiro ou dos pais. Foi muito impactante também confirmar na pesquisa que as necessidades não atendidas da pessoa que vive com demência estão interligadas com as necessidades não atendidas dos cuidadores informais. Ou seja, reforçando que precisamos dar suporte a quem cuida. Os cuidadores informais sentem falta de treinamento, de conhecimento sobre a doença e sobre o exercício do cuidado. O que é reforçado por um outro achado do estudo, de que o tempo como cuidador, portanto a experiência no cuidado, está associado a mais necessidades não atendidas da pessoa com demência.
Quais são os desafios prioritários para melhorar a resposta no país em relação às demências?
Dra. Cleusa Ferri: Considero preocupante, como já disse, o cenário da baixa taxa de diagnóstico, estimando que 80% dos casos de doença de Alzheimer e outras demências permaneçam sem identificação. Este é talvez primeiro desafio. Para reverter essa situação no país, é imperativo ampliar o conhecimento da população sobre as demências. Sabemos que frequentemente as pessoas ignoram alguns sintomas, por acreditar que fazem parte do processo natural de envelhecimento, o que resulta em atraso na busca por ajuda.
Além da conscientização, é fundamental assegurar o acesso aos serviços de saúde e garantir um serviço preparado, com por exemplo, a capacitação das equipes de saúde. Embora existam iniciativas em alguns estados e municípios, falta uma direção e coordenação em nível nacional para garantir princípios de cuidado uniformes para todas as pessoas. Este plano deve ainda se antecipar ao aumento na demanda por atendimento. Considerando uma hipótese de melhoria na taxas de diagnóstico, reduzindo, por exemplo, de 80% para 50% o número de casos não diagnosticados, não daremos conta de atender a todos se não houver investimento proporcional. Assim, acredito que, para além da otimização dos serviços existentes, pode ser necessário desenvolver equipamentos mais específicos para atender às necessidades das pessoas que vivem com demência.
Quais as recomendações em termos de implementação de políticas públicas para dar respostas a esses problemas?
Dra. Cleusa Ferri: O ponto principal neste momento é ter um plano nacional, uma estratégia para o país. É importante que estados e municípios trabalhem na mesma direção. O Brasil possui uma vantagem enorme em relação a muitos outros países, que é o SUS, nosso sistema de saúde público e gratuito, com uma rede de atenção primária que nos dá orgulho. Sem dúvida, essa rede pode trabalhar a nosso favor na identificação dos casos e no cuidado, a longo prazo, das pessoas com demência e seus familiares. Hoje estimamos que existam 2 milhões de brasileiros vivendo com demência. Um número que pode triplicar até 2050 devido ao envelhecimento da população.
Portanto, é urgente pensar em estratégias específicas para as demências. Precisamos incorporar a demência nos programas de prevenção de outras doenças crônicas, pensando em reduzir os riscos e desacelerar o crescimento do número de casos. Ao atuar na prevenção de doenças cardiovasculares, por exemplo, contribuímos também para a redução do risco para as demências. O que é bom para o coração é bom para o cérebro.
Como a comunidade pode se envolver e contribuir para melhorar a situação das pessoas afetadas pela demência?
Dra. Cleusa Ferri: Uma maneira da comunidade colaborar é buscando se informar sobre a doença de Alzheimer e outras demências, derrubando falsas crenças de que os sintomas são próprios da idade. Outra necessidade fundamental é combater o estigma que prejudica tanto a busca pelo diagnóstico quanto o cuidado. Isso inclui a família da pessoa que recebe o diagnóstico e a sociedade como um todo. Disseminando a conscientização, poderemos ter uma sociedade mais amiga, acolhendo a pessoa que vive com demência.
É direito de todos ser bem recebido em qualquer ambiente, seja um espaço público, um banco, um supermercado. O aumento do conhecimento sobre o que é a demência, assim como a redução do estigma associado a ela, é um passo para uma sociedade mais solidária em relação as pessoas com demência e seus familiares/cuidadores. Só chegaremos a esse cenário acolhedor com políticas públicas eficazes e ajuda da própria mídia. Temos de reconhecer o direito da pessoa que vive com demência de ter autonomia por mais tempo possível e levar uma vida integrada à sociedade.
Quais seriam as suas considerações finais sobre o este relatório nacional?
Dra. Cleusa Ferri: Nós fizemos dois relatórios, um pela UNIFESP com a COPID -MS(Coordenação da Saúde da pessoas idosa na atenção primária do Ministério da Saúde) e outro pelo Hospital Alemão Oswaldo Cruz, dentro do PROADI-SUS, o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde, com a COPP (Coordenação de Gestão de Programas de Pesquisa do DECIT/SCTIE/MS.
Os relatórios são complementares; no primeiro, falamos mais de epidemiologia, estigma e taxas de subdiagnóstico. O relatório mais recente trata das necessidades de cuidado, das estimativas de custos do cuidado e também revela o panorama de investimentos em pesquisas relacionadas às demências, mostrando que precisamos direcionar com mais equilíbrio os recursos para garantir pesquisa em áreas estratégicas, como epidemiologia, por exemplo, para termos essa visão geral sobre o tema no país ou mesmo pesquisa sobre serviços de saúde, oferecendo o melhor possível com base em evidência científica. Posso dizer que as duas experiências foram muito importantes.
Trabalhamos com duas secretarias do Ministério da Saúde, a de Inovação e Tecnologia em Saúde e a da Atenção Primária; foi um reconhecimento da importância dessa temática e de que é hora de agir. Existe outra iniciativa com articulação grande entre diversos ministérios, para instituir a Política Nacional de Cuidados, um projeto importante que certamente também pode beneficiar pessoas que vivem com demência e seus familiares.
“Acredito que estamos vivendo um momento importante. Temos organizações como a Febraz atuando pela integração das iniciativas, o Ministério com um olhar mais atento para a questão e o apoio de instituições como o Hospital Alemão Oswaldo Cruz, dentro do PROADI-SUS, além da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Temos ainda vários estados criando planos para dar resposta às demências e estratégias em alguns municípios, inclusive com projetos de lei já aprovados. Como exemplos, podemos citar o município de São Paulo e também o Distrito Federal. Mas precisamos de mais iniciativas e de preferência articuladas entre si visando a prevenir e atender às necessidades das pessoas com demência e seus familiares no país como um todo.”
*Cleusa Ferri é psiquiatra e epidemiologista no Hospital Alemão Oswaldo Cruz e professora no programa de pós-graduação em Psiquiatria do Departamento de Psiquiatria da EPM – UNIFESP. Mestre em psicobiologia e epidemiologia, além de doutora em psiquiatria. Seus principais interesses de pesquisa incluem epidemiologia e prestação de cuidados a idosos com transtornos mentais, bem como medicina baseada em evidências, com especialização em revisão sistemática e avaliação de tecnologia em saúde.