Com o tema “Políticas de cuidado e demência: enfrentando os desafios do cuidado na América Latina”, o webinário promovido pela Alzheimer’s Disease International (ADI) reuniu pesquisadores, representantes de organizações e a visão de quem vive com demência para refletir sobre os avanços, obstáculos e necessidades urgentes em torno do cuidado.
O evento, conduzido por Diego Aguilar, diretor regional da ADI para as Américas, está disponível na íntegra no canal da organização no YouTube:
“Este webinário evidenciou a urgência de repensarmos as políticas de cuidado na América Latina a partir de uma perspectiva inclusiva e intergeracional. Abordamos desde os cuidadores adolescentes — muitas vezes invisibilizados — até a voz de uma pessoa que vive com demência. As políticas públicas são uma resposta fundamental diante dos desafios apresentados, sobretudo quando falamos da qualidade do cuidado, especialmente no cuidado de longa duração. Como ADI, seguimos comprometidos em promover políticas que reconheçam e apoiem todos os cuidadores, em toda a sua diversidade”, destacou Diego Aguilar.
Cuidado como direito desde o início do diagnóstico
Na abertura do encontro, a diretora executiva da ADI, Paola Barbarino, defendeu que o cuidado não pode ser uma consequência tardia do diagnóstico de demência. “Deve ser um direito garantido desde o primeiro momento”, afirmou. Para ela, em um contexto de acesso limitado a tratamentos modificadores da doença, como ocorre na América Latina, os sistemas de apoio, políticas de cuidado e planos nacionais tornam-se ainda mais urgentes.
Barbarino também destacou o papel do cuidado como ferramenta de justiça e promoção da dignidade, autonomia e qualidade de vida, e defendeu respostas estatais que sejam coordenadas, sustentáveis e sensíveis às realidades locais.
Déborah Oliveira: cuidado centrado na pessoa e fortalecimento dos sistemas de longa duração
A pesquisadora brasileira Déborah Oliveira, professora da Universidade Andrés Bello (Chile), apresentou um panorama sobre os sistemas de cuidados de longa duração na atenção a pessoas com demência. Especialista em políticas de cuidado e com trajetória acadêmica no Brasil, Reino Unido e Chile, Déborah destacou que a demência é uma condição crônica e progressiva, que reduz capacidades físicas e mentais, exigindo apoios personalizados para preservar o máximo possível da funcionalidade da pessoa.
Déborah chamou atenção para o fato de que a maior parte dos cuidados ocorre nos lares, com forte presença de cuidadores informais — especialmente familiares — que são o pilar não remunerado e pouco apoiado dos sistemas de cuidado. Ela criticou a abordagem biomédica predominante nos serviços formais, que tende a ignorar a perspectiva da pessoa e suas preferências.
“O foco precisa ser a pessoa, e não a demência. A prioridade deve ser promover a autonomia, o protagonismo e a dignidade, mesmo nas fases avançadas da condição”, defenderam.
A pesquisadora também abordou barreiras estruturais, como o estigma, a falta de diagnóstico (mais de 80% dos casos não são identificados na região), ausência de profissionais capacitados e a pobreza multidimensional que atinge muitas famílias. Segundo ela, o cuidado ainda é visto como caridade e não como política pública.
OPAS alerta para crescimento da demência e defende planos nacionais
O psiquiatra Matías Irrazábal, assessor regional da OPAS/OMS, trouxe dados que reforçam a urgência da pauta. Segundo ele, 4,5 milhões de pessoas vivem com demência na América Latina e no Caribe — número que pode chegar a 13,7 milhões até 2050, um aumento de mais de 200%.
Entre os principais desafios, destacou:
Subdiagnóstico (mais de 70% dos casos)
Baixa implementação de planos nacionais
Falta de dados epidemiológicos em mais de dois terços dos países
Insuficiência de profissionais capacitados
Carga concentrada nos cuidadores familiares, sem apoio adequado
Para ele, políticas eficazes precisam articular setores, investir em diagnósticos precoces, formar profissionais, apoiar cuidadores e reduzir o estigma. “O que precisamos agora é agir”, concluiu.
Delfina Shenone: gênero e desigualdade no trabalho do cuidado
A socióloga argentina Delfina Shenone, do Equipo Latinoamericano de Justicia y Género, apresentou uma análise sobre a economia do cuidado a partir da desigualdade de gênero. Com base em dados da Argentina, ela mostrou que as mulheres realizam em média 44% mais trabalho não remunerado de cuidado do que os homens — o que representa, muitas vezes, uma jornada de mais de 4 horas por dia dedicada a essas tarefas.
Shenone destacou que esse trabalho impacta diretamente as trajetórias educacionais, profissionais e pessoais das mulheres, especialmente entre aquelas de classes populares e que vivem em famílias monoparentais.
Segundo a socióloga, “66% dos jovens de 15 a 17 anos realizam tarefas intensivas de cuidado, dedicando até 4 horas diárias, o que impacta sua qualidade educacional e de vida”. Ela enfatizou a necessidade de políticas que não releguem esse grupo à condição de “estratégia de cuidado” diante da falta de serviços públicos. Apesar de uma ligeira redução da desigualdade entre adolescentes, o cuidado ainda é visto como uma responsabilidade feminina — percepção que se consolida com o avanço da idade. “As mulheres adolescentes entrevistadas reconhecem que terão que cuidar futuramente. Já os homens esperam que esse papel não lhes caiba”, disse.
Delfina defendeu que políticas públicas de cuidado precisam ser universais, estruturadas e sensíveis à diversidade de contextos, e que a socialização de meninos e meninas desde a infância é chave para transformar os padrões culturais.
Selva Marasco: a experiência de viver com demência
A argentina Selva Marasco, diagnosticada com demência de corpos de Lewy, emocionou o público ao relatar sua trajetória e suas reflexões sobre os “três silêncios” que cercam a demência: o silêncio social (estigma), o político (ausência de políticas públicas eficazes) e o do cuidador (falta de apoio e reconhecimento).
“Cuidar é um ato de amor, mas também exige preparo. O cuidador precisa ser cuidado. E a pessoa com demência precisa ser reconhecida na sua humanidade, não apenas na sua condição”, afirmou.
Selva defendeu a criação de uma legislação que contemple a dupla dimensão do cuidado — quem cuida e quem é cuidado — e chamou atenção para a necessidade de escuta, inclusão e apoio ao longo de toda a jornada da demência.
Mônica Roqué: o cuidado como política de equidade
A médica e especialista em políticas públicas Mônica Roqué, presidente honorária da Associação Latino-Americana de Gerontologia Comunitária, encerrou o evento com uma análise sobre a economia do cuidado e seus impactos sobre as mulheres.
Segundo Roqué, as mulheres dedicam em média de 22 a 43 horas semanais ao trabalho não remunerado, o que as afasta do mercado formal, compromete suas rendas e aumenta a pobreza na velhice. Ela citou dados da CEPAL e da OIT que revelam brechas salariais, previdenciárias e de acesso ao emprego formal entre homens e mulheres, e defendeu políticas de cuidado como instrumentos de justiça social, criação de empregos e promoção da igualdade de gênero.
“Cuidar não é um custo. É um investimento. As políticas de cuidado têm potencial para gerar milhões de empregos formais na América Latina, com impacto positivo direto sobre a equidade de gênero”, afirmou.
Cuidado é política pública, não improviso
O painel deixou claro que só políticas públicas bem estruturadas, baseadas em dados locais e em participação efetiva de pessoas com diagnóstico e cuidadores familiares, serão capazes de enfrentar os desafios do cuidado à demência na América Latina. A Febraz reafirma seu compromisso de atuar em todas essas frentes, promovendo o cuidado como direito inalienável.